quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Folha de S. Paulo - Com demanda aquecida, análise de oceanos vira bom negócio

NADIA PONTES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando se lançaram no mercado, em 2010, os sócios da Salt Ambiental ofereciam um serviço ainda incomum entre empresas de pequeno porte no Brasil: o processamento de variáveis meteoceanográficas, como altura e direção das ondas, temperatura, salinidade e nível do mar.

Apesar dos 8.600 quilômetros de costa, o monitoramento das condições do oceano no país era escasso antes do aquecimento do setor, que foi impulsionado pela exploração de petróleo e pelo transporte de carga.

Desde então, os oceanógrafos e ex-colegas que fundaram a empresa executaram mais de 200 análises para estudos e implantação de empreendimentos, a maior parte ligada às áreas petrolífera e de logística.

"As ciências marinhas no Brasil ainda são uma novidade. Na parte operacional, é quase inexistente", diz Daniel Ruffato, diretor da Salt Ambiental, incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia da USP.

A empresa, que faturou R$ 1,2 milhão em 2016, recebeu alguns aportes da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), no total de R$ 2,5 milhões.

João Nicolodi, pesquisador e professor da Furg (Universidade Federal do Rio Grande), concorda que o país ainda engatinha nessa área.

Ele coordena a Rede Ondas, que tem oito boias espalhadas em águas rasas, com até 20 metros de profundidade, e disponibiliza a informação de graça na internet.

A rede faz parte da Goos-Brasil, sistema nacional de observação dos oceanos supervisionado pela Secretaria da Comissão Interministerial de Recursos do Mar.

No total, a plataforma reúne informações produzidas por mais de 400 equipamentos de monitoramento.

O acompanhamento dessas condições contou com apoio da Marinha, que, segundo Nicolodi, teve papel fundamental. "Eles têm a estrutura para monitorar águas profundas, de até 500 metros. Poucas embarcações podem fazer esse trabalho".

A disponibilização dos dados para pesquisa foi um entrave, já que informações coletadas por empresas privadas e projetos governamentais não se tornam públicas.

"As empresas geram dados, mas eles não 'conversam', não há padronização ou um sistema", diz Ruffato.

Esse cenário motivou a criação do Sistema Integrado de Monitoramento Ambiental Participativo do Litoral Norte, que contou com a Salt.

Desde 2014, a plataforma on-line produz dados georreferenciados sobre as condições ambientais, com informações sobre praias, pontos de mergulho, avistamento de animais marinhos e até crimes contra o meio ambiente. Qualquer pessoa pode acessar as informações e contribuir com o sistema.

"Ainda precisamos avançar muito. Com o que construímos nos últimos anos, melhoramos os estudos de dinâmica costeira e dos oceanos. Passamos a ter dados reais para poder comparar com os modelos, que ficaram mais realísticos", afirma Nicolodi.

Os estudos na área, que incluem do monitoramento sobre a saúde do oceano e observação das mudanças climáticas até a previsão meteorológica e planejamento, são estratégicos para o país.

"Séries estatísticas sobre comportamento das ondas são fundamentais numa obra de engenharia. Elas evitam erros e tragédias, como a que aconteceu na ciclovia que desabou no Rio", diz Nicolodi, citando a queda de parte da pista à beira-mar que matou duas pessoas em 2016, às vésperas dos Jogos Olímpicos.


Folha de S. Paulo – Devemos deixar ecossistemas íntegros e saudáveis de herança/ Artigo/ Yara Schaeffer Novelli

YARA SCHAEFFER-NOVELLI é professora da USP, sócia-fundadora do Instituto BiomaBrasil e membro do Grupo de Especialistas em Manguezal da União Internacional para a Conservação da Natureza - SSC/IUCN

Especial para a Folha

A linha de costa do Brasil tem extensão de cerca de 8.500 quilômetros e uma superfície de zona costeira, o espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra (que inclui seus recursos, renováveis ou não) da ordem de 600 mil quilômetros quadrados.
Nessa faixa, contamos com 463 municípios, ou 8% do total de cidades brasileiras. O número algumas inclui cidades de grande porte, como nove capitais.


É nesse espaço -caracterizado por ambientes especialmente sensíveis, vulneráveis e frágeis, devido à presença de ecossistemas como manguezais, estuários, marismas, lagunas e praias- que se encontra algo como 60% da população do país.
A interação entre os componentes desse sistema é um verdadeiro quebra-cabeça.
Temos uma zona costeira cujos limites não podem ser delineados, pois a própria linha de costa que determinaria a fronteira entre a terra emersa e o mar é dinâmica, variando com processos naturais, de ordem ambiental, e de origem antrópica, ou seja, induzidos pelo homem.


Entre os processos ambientais que geram impactos e alteram as feições dessa área litorânea, identificamos os geológicos, os climáticos e os decorrentes da própria dinâmica costeira, influenciada por tempestades, furacões, tormentas, ressacas e transgressões marinhas, quando o nível do mar sobe para perto do solo e causa inundação.
Esse último fator pode ser compreendido melhor quando se fala do aumento do nível do mar.
Estamos falando de cenários de elevação de 5,4 centímetros por ano neste século, segundo estudos conduzidos pelo físico e meteorologista José Marengo.


Esse avanço do mar em relação à terra emersa provoca inundações de água do mar nas cidades costeiras e contaminação do lençol freático, aumentando a sua salinidade.
Isso compromete a agricultura de pequena escala, além de causar o estreitamento de praias e a erosão da linha de costa, com perda de quarteirões inteiros.
Esse quadro quase sinistro pode ser equacionado a partir de mudanças ou de adaptações do comportamento dos seres humanos.


Esse avanço começa por admitir que seres vivos, manguezais e oceanos fazem parte de um mesmo sistema, o planeta Terra.

Os ciclos de vida, embora tenham suas peculiaridades, têm suas escalas de espaço e tempo próprias para se reproduzirem de forma sustentável, obedecendo às diferentes escalas produtivas.
É essa reprodução que irá repor os estoques explorados, desde que respeitem as taxas de reprodução das respectivas populações.

Esse respeito às taxas de "reposição" dos seres representa uma revisão nos moldes da sustentabilidade dos recursos naturais para retomada do desenvolvimento econômico sob bases duradouras, à semelhança do que foi proposto na década de 1970 pelo economista alemão E. F. Schumacher, no livro "O Importante é Ser Pequeno".

Atualmente lidamos com "mercados artificiais", onde são negociadas mercadorias que não foram geradas para serem "vendidas", como o meio ambiente, segundo o filósofo austríaco Karl Polanyi.
Com vista à sustentabilidade de ecossistemas complexos, como aqueles com que estamos lidando, é essencial que o uso dos recursos não comprometa a saúde ou a integridade dos sistemas em nenhum nível.

Cabe esclarecer que saúde e integridade não são sinônimos: saúde se refere ao presente e integridade faz referência a período de tempo mais abrangente, que lida com a habilidade de manutenção dos sistemas em um futuro ainda imprevisível.

Somos responsáveis pelo patrimônio herdado de nossos antepassados, de forma que ele passe para as futuras gerações. Elas, igualmente, serão responsáveis por esta cadeia de custódia.

A natureza é resiliente, capaz de auto-organização e de autorreparação. Como partes do sistema, precisamos apenas deixar de herança a saúde e a integridade deste "capital de múltiplas gerações".

Seminário Internacional Dia 5 e 6 de Outubro de 8h às 18h


 Seminário Internacional

Dia 5 e 6 de Outubro de 8h às 18h
Auditório da ADUnB na L3 Norte
Universidade de Brasília (UnB)
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O Seminário Internacional sobre Sustentabilidade intenciona gerar aproximações sucessivas entre importantes atores da área socioambiental para o permanente debate sobre Sustentabilidade e o compartilhamento de ações concretas em busca de formulações de ordem conceitual e prática, a serviço da coletividade.

A programação pode sofrer alterações sem aviso prévio.
As inscrições são limitadas.
+55 (61) 3218-9118 | 3218-9126
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Eng.a Agrônoma
Tel.: (061) 9382-0072
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Projeto Bicicletada Nacional Rio+20

Folha de S. Paulo - Dois anos após Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, há pouco o que comemorar/ Artigo/ HELOISA OLIVEIRA E MAITÊ GAUTO

Há dois anos, a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável se reunia em Nova York, na sede da ONU, para discutir o futuro do nosso planeta.


Com o encerramento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) em dezembro de 2015, era necessário estabelecer uma nova agenda de desenvolvimento para os próximos 15 anos.

Nasciam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um acordo internacional com 17 objetivos e 169 metas que devem ser alcançadas até 2030. Formava-se mais um pacto para o progresso e o desenvolvimento de forma justa e equitativa, integrando as dimensões social, econômica e ambiental.


Chegamos a 2017, e o Brasil patina na implementação da Agenda 2030 no país. A Fundação Abrinq, representante da sociedade civil na Comissão Nacional para os ODS, vem acompanhando de perto essa lenta jornada inicial, com a preocupação de que o país estabeleça as condições necessárias para a boa implementação nacional dos ODS e que crianças e adolescentes tenham seus direitos mantidos e olhados com a devida prioridade.


Sem dar a atenção merecida a esse público, o Brasil não se construirá sobre as bases do desenvolvimento sustentável. As desigualdades internas brasileiras pesam mais sobre as crianças e adolescentes, principalmente sobre aquelas mais pobres e em maior situação de vulnerabilidade.

Hoje, duas em cada cinco crianças de 0 a 14 anos vivem em situação de pobreza no País, ou seja, têm renda familiar per capita de até ½ salário mínimo. E esse percentual ultrapassa 60% em Estados como Alagoas, Maranhão, Ceará, Bahia e Pernambuco.


Como tornar o Brasil um país desenvolvido sem mudar essa realidade? Dez dos 17 ODS se relacionam diretamente com a vida e a cidadania de crianças e adolescentes. Se quisermos realmente nos comprometer com o cumprimento da Agenda 2030, é fundamental enfrentarmos os imensos desafios de forma equilibrada entre os Estados brasileiros.


A região Nordeste tinha mais de 60% da sua população até 14 anos vivendo em situação de pobreza, por exemplo. A redução das desigualdades deve estar calcada em uma robusta estratégia de implementação subnacional, envolvendo Estados e municípios desde o início e até 2030.

Para facilitar o monitoramento desse processo, a Fundação Abrinq atua a favor da construção de uma plataforma de metas e indicadores nacionais, que permitirão o monitoramento dos progressos nacionais na implementação da Agenda 2030 no país.


Entretanto, para que esse monitoramento seja bem-sucedido, também é importante que gestores públicos das diferentes esferas conhecem e estejam engajados, assim como o conjunto da sociedade brasileira. Ainda, é fundamental a ampliação dos mecanismos de participação da sociedade civil, que está fortemente engajada nessa agenda.


Essas são condições para fortalecer a discussão sobre o financiamento das políticas, programas e ações em âmbito federal, estadual e municipal. Somente assim, o Brasil terá os pilares necessários para construir seu caminho a favor do desenvolvimento sustentável.

HELOISA OLIVEIRA é administradora executiva da Fundação Abrinq

MAITÊ GAUTO é líder de políticas públicas da Fundação Abrinq. Heloísa e ela são representantes da sociedade civil na Comissão Nacional para os ODS

A importância das árvores mortas

A importância das árvores mortas

Por Marcos Rodrigues*

Mantenho em meu jardim três árvores mortas, que continuam em pé. Os jardineiros e paisagistas ficam horrorizados com minha decisão, aparentemente insana. Árvores mortas apodrecem, e seus galhos podem cair sobre transeuntes e residentes, levando-os à morte. Eu concordo.


A primeira delas é um ibirapitá de uns dez metros de altura e que morreu há cerca de doze anos. Aprendi que ibirapitás não têm vida muito longa, diferente dos milenares jequitibás. Os galhos foram apodrecendo e caindo. Os mais perigosos eu tive o cuidado de retirá-los com a ajuda de serrotes. Assim, ficou por ali, como um totem prateado, somente o tronco principal, de uns sete metros de altura e uns trinta a quarenta centímetros de diâmetro, ornamentando meu jardim. Certo dia, um pica-pau-carijó (Colaptes melanochlorus) começou a cavar um buraco.


Ficou dias martelando, com seu poderoso bico e infatigável pescoço um perfeito oco redondo, cuja entrada tinha cerca de menos de dez centímetros de diâmetro. Entre um turno de marteladas e outro, o pica-pau voava para uma sucupira-branca (Pterodon emarginatus) bem próxima e cantava suas notas agudas enquanto parecia descansar. Acostumou-se tanto à minha presença, que deixava que eu me aproximasse até três metros de distância; depois voava gloriosamente para a sucupira-branca. Ali botou ovos, criou os filhotes, trazendo-os insetos incansavelmente por vários dias quando, por fim, todos desapareceram. Esse ciclo se repetiu pelo menos por quatro primaveras. Todo ano o pica-pau ali aparecia, dava uma ajeitada no seu oco, criava sua prole, e desaparecia.


A partir de certo ano, o pica-pau desistiu de fazer do oco do ibirapitá sua morada, muito embora continue frequentando o jardim em busca de suas presas. Foi nesta ocasião que um bem-te-vi-rajado (Myiodnastes maculatus) apoderou-se do velho oco, e durante os dois anos seguintes botou seus ovos e criou seus ninhegos até estes alçarem voo.

Este ano fui obrigado a retirar o totem por motivos de segurança, pois a queda da árvore seria eminente. O bem-te-vi-rajado voltou; procurou pelo tronco; piou; voou por todos os lados procurando seu antigo lar, e nada. Resolveu este ano fazer o ninho entre a haste de uma folha velha de palmeira e o seu tronco, o que, de certo modo, mimetiza uma cavidade.

A segunda árvore morta que eu mantinha em pé era um capitão-do-campo (Terminalia argentea). Ela não era muito grossa, mas tinha vários ramos, e sobre ela crescia e florescia uma belíssima jibóia com suas enormes folhas em forma de orelha de elefante verde claro, manchadas de prata e ouro, a comum Epipremnum aureum. A jiboia transformava o singelo tronco da árvore morta em um ambiente complexo, tropical, cheio de reentrâncias, lacunas e raízes expostas onde eventualmente outras plantas aproveitavam o substrato para também crescer ali.

Foi num pequeno galho podre de não mais de dez centímetros de diâmetro, protegido pelas folhas da jiboia, que um pica-pau-anão (Picumnus cirratus) fez sua cavidade. Com rápidos movimentos de pescoço e um pequeno, mas poderoso bico, o pica-pau-anão foi capaz de escavar um buraco de menos de três centímetros de diâmetro, onde depositou seus ovos e criou seus filhotes. Voltou ao mesmo oco por três anos consecutivos. Infelizmente os galhos deste defunto capitão-do-campo não resistiram por muito tempo e acabaram sendo eliminados do jardim. Mas os pica-paus-anões continuam a frequentar o jardim e, vez ou outra os escuto cantando aquele inconfundível trinado fino e longo.

A terceira árvore morta eu não sei como se chama, pois já estava morta quando cheguei ao jardim pela primeira vez, há mais de quinze anos. Ela permanece até hoje, quase sem galhos, mas o tronco principal continua aparentemente firme e forte. Ali, durante nove anos consecutivos viveu uma família de João-graveto (Phacellodomus rufifrons). O joão-graveto constrói um grande ninho que é um amontoado de gravetos tão pesado que acaba por pender o galho em que está fixado. O ninho, diferente da maioria das outras aves, é usado durante todo o ano, e nele famílias de até dez indivíduos pernoitam cotidianamente.

Se várias espécies de aves podem usar o mesmo tipo de local para construírem seus ninhos, a competição entre indivíduos, tanto das mesmas quanto de diferentes espécies, é inevitável, inclusive sucedendo a morte aos mais fracos. À medida que retiramos as árvores mortas do ambiente, aumentamos a competição entre estas aves que necessitam de cavidades ou ocos. Assim, o número de espécies ou de indivíduos dominantes pode afetar o número e a distribuição dos outros subordinados. Em situações extremas, uma determinada espécie pode ser extinta de áreas onde todos os locais de nidificação adequados são ocupados por concorrentes dominantes. Em situações menos extremas, o número de espécies subordinadas pode variar de um ano para outro ou de um lugar para outro. Árvores mortas, mas ainda em pé, têm sua função no ecossistema.

Só no meu pequeno jardim pude observar interações agressivas entre os pica-paus e os bem-te-vis, entre as andorinhas (Pygochelidon cyanoleuca), os tuins (Forpus xanthopterygius), os periquitos (Brotogeris chiriri) e as curruíras (Troglodytes musculus). Sem contar que outros animais também podem usufruir destes ocos, como abelhas, roedores e gambás.

Ocos de árvores são um recurso crítico para a reprodução de muitas aves. Onde as árvores mortas estão desaparecendo, a limitação da população de aves pode ser um problema sério de conservação. Já se conhecem hoje espécies de aves com população em declínio devido à falta de árvores com ocos propícios para a construção de ninhos, como é o caso do papagaio australiano Polytelis swainsonii. A falta de ocos utilizáveis pode ser fator limitante para os psitacídeos em geral (araras, papagaios, cacatuas, maritacas e tuins), pois eles dependem de outras espécies que constroem os buracos, como pica-paus, ou de buracos produzidos ao acaso por um quebra de galhos por exemplo.

A quebra de galhos seja por apodrecimento ou por ventos fortes, por incrível que pareça, tem sido apontada como a melhor maneira de formar cavidades. São mais importantes até que as cavidades produzidas por pica-paus, pois são mais longevas, duram mais. Portanto, têm o potencial de hospedar por mais tempo os animais que usam cavidades, mas que não as constroem.

Uma árvore morta no seu jardim, ou num jardim público, faz parte de um ecossistema, abriga ainda formas de vida e potenciais locais para ninhos. Uma árvore morta não é apenas uma árvore morta.


Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas.





*Marcos Rodrigues é doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

Transumano: a união do ser humano com os robôs e a inteligência artificial, artigo de José Eustáquio Diniz Alves



Alicia Vikander in Ex Machina (2014). Foto: IMDb
Alicia Vikander in Ex Machina (2014). Foto: IMDb

[EcoDebate] Transumano é uma concepção de um ser humano melhorado e aperfeiçoado, ou de um ser pós-humano e pós-sapiens. O transumano, tal como imaginado pelos teóricos transumanistas, está em gestação e poderá vir à luz pelo avanço da ciência e da tecnologia, que permitirá a aplicação de técnicas das áreas de genética, nanotecnologia, robótica e neurociência, possibilitando superar os limites impostos ao ser humano por seu próprio corpo biológico natural.


O transumano, dizem, será um humano mais inteligente, por meio da criação de implantes neurais que permitam a interação com computadores pelo pensamento, e o uso de drogas capazes de manipular o cérebro humano, melhorando sua cognição, memória e concentração. A fusão do cérebro com a tecnologia e a inteligência artificial abriria um campo de evolução inimaginável.


Segundo os teóricos da singularidade tecnológica, o transumano também será imortal, pois a medicina regenerativa permitirá a substituição de órgãos, de células e moléculas do corpo, superando os limites da biologia e repondo partes do corpo com um substancial aperfeiçoamento do organismo. A manipulação genética de embriões eliminaria doenças e retardaria o envelhecimento.


Permitiria também ajudar a restaurar a visão e a audição, substituir órgãos danificados e restaurar as funções do sistema nervoso. A imortalidade surgiria da aplicação da “clonagem terapêutica” e da “medicina do rejuvenescimento”.


O transumano, desta forma, estará mais próximo de um ciborgue: meio humano, meio máquina. Ele poderá surgir da aceleração da evolução, engendrada pela própria racionalidade humana.
No livro “A Era das Máquina Espirituais”, o escritor Raymond Kurzweil, defende a ideia de que o crescimento exponencial da capacidade computacional, a aceleração do uso da inteligência artificial, o aperfeiçoamento das redes neurais, o progresso dos algoritmos genéticos, o desenvolvimento da robótica e a enorme capacidade de processamento de dados e informações, permitiria o surgimento de um ser humano superior: o transumano.


Para Kurzweil, o casamento da sensibilidade humana com a inteligência artificial e o avanço da tecnologia nas diferentes áreas, viabilizariam um milênio extraordinário, que alteraria, substancialmente, não só a maneira como vivemos, mas também a própria essência do ser humano.


O pensamento singularitano-cornucopiano prevê o desenvolvimento de uma raça superior (e imortal) vivendo em um mundo de abundância e onde a tecnologia seja capaz de resolver todos os problemas ambientais do presente e do futuro.


Evidentemente, há muitas contestações às propostas do movimento transumanista. A ideia de nos tornarmos transumanos imortais pode parecer muito interessante e convidativa, mas traz implicitamente muitos riscos e inúmeras discordâncias científicas e filosóficas. Um dos principais riscos é que um pequeno número de pessoas dê início a uma raça superior, enquanto a maioria da humanidade se transforme em uma sub-raça.


O debate sobre o novo ser – transumano superinteligente e longevo (ou imortal) – está aberto. Em 2011 dei uma entrevista para a jornalista Marta Barcellos, que fez uma ótima reportagem para o jornal Valor sobre a possibilidade da extensão da esperança de vida. Já tive também a oportunidade de discutir este assunto em dois artigos, cujos links seguem abaixo para quem tiver interesse em acompanhar alguns dos argumentos da defesa e da crítica às concepções transumanistas. Estes pontos foram retomados na entrevista ao IHU (28/09/2017) como pode ser visto no link abaixo.


Referências:


Marta Barcellos. Um longo amanhã, Jornal Valor, 04/11/2011
http://www.valor.com.br/cultura/1081804/um-longo-amanha
ALVES, JED. Longevidade, singularidade, criogenia e transumanismo, Ecodebate, RJ, 08/02/2017
https://www.ecodebate.com.br/2017/02/08/longevidade-singularidade-criogenia-e-transumanismo-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. Seremos transumanos imortais? Projeto Colabora, RJ, 12/09/2017
http://projetocolabora.com.br/vida-sustentavel/seremos-transumanos-imortais/
ALVES, JED. A Inteligência Artificial pode se transformar em um monstro incontrolável. Entrevista a Patrícia Fachin, IHU, 28/09/2017
http://www.ihu.unisinos.br/572111-a-4-revolucao-industrial-ainda-e-uma-promessa-entrevista-especial-com-jose-eustaquio-alves

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/10/2017

"Transumano: a união do ser humano com os robôs e a inteligência artificial, artigo de José Eustáquio Diniz Alves," in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 4/10/2017, https://www.ecodebate.com.br/2017/10/04/transumano-uniao-do-ser-humano-com-os-robos-e-inteligencia-artificial-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/.

Quem garante o final feliz dos outros pica-paus?


Por Duda Menegassi
Foto: Renato Pinheiro.
Na foto, um registro de uma pica-pau-da-parnaíba fêmea, em um ambiente de Cerrado florestal, 
fundamental para sua sobrevivência. Foto: Renato Pinheiro.


Dois pica-paus. Duas histórias e, infelizmente, a que tem o final feliz garantido é ficção. Enquanto estreia nos cinemas nacionais o filme “Pica-Pau”, um live-action de um dos personagens mais clássicos dos desenhos animados infantis, o pica-pau-da-parnaíba (Celeus obrieni) vive sua própria aventura com contornos dramáticos. No longa-metragem dirigido por Alex Zamm, o famoso pica-pau enfrenta um problema comum às aves: a destruição do seu habitat.


Fora das telonas, a perda de áreas naturais representa o maior vilão para fauna como um todo. Para o pica-pau-da-parnaíba, ameaçado de extinção, a destruição do seu habitat é ainda mais problemática, porque ele é uma espécie com alto nível de especialidade. O que isso significa? Que ele só sobrevive em áreas de Cerrado florestal, onde há presença do Guadua paniculata, um bambu mediano genericamente conhecido como taboca.


“O pica-pau-da-parnaíba só vive em Cerrado florestal, aquele localizado nas margens dos cursos d’água, como mata de galeria ou mata ciliar, de acordo com a largura do rio, ou em áreas de Cerradão, onde apesar de mais seco, existem árvores de maior porte. Mas tem que ter o bambu. Porque ele depende das áreas florestais para fazer seus ninhos nas árvores, mas precisa do bambu para alimentação porque ele se alimenta exclusivamente de formigas, que fazem seus ninhos nas hastes da taboca. E curiosamente, das 30 espécies de formiga que existem na taboca, ele se alimenta apenas de 5. Ele depende, portanto, de um ambiente super especializado”, conta Renato Pinheiro, Doutor em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre e professor da Universidade Federal do Tocantins.


Renato conduziu uma pesquisa entre 2008 e 2012, financiada pela Fundação Boticário, com o objetivo de entender a espécie, que ainda era um mistério para ciência. Isso porque, apesar de ter sido descrita pela primeira vez em 1926, no Piauí, a espécie desapareceu e só foi redescoberta 80 anos depois, no Tocantins.


A pesquisa desvendou a área de ocorrência do pica-pau, que foi encontrado no Tocantins, Maranhão, em Goiás e até mesmo no Mato Grosso. Apesar da ampla distribuição, ele foi incluído na lista de espécies ameaçadas de extinção do Ministério do Meio Ambiente, em âmbito nacional, e na Red List da International Union for Conservation of Nature (IUCN), em nível mundial.


Um pica-pau-da-parnaíba macho, espécie ameaçada de extinção. Foto: Renato Pinheiro.
Um pica-pau-da-parnaíba macho, espécie ameaçada de extinção. Foto: Renato Pinheiro.


A ameaça se deve não apenas ao alto nível de especialidade quanto ao habitat e à alimentação, mas também ao contexto em que a ave está inserida: um Cerrado sob ritmo acelerado de destruição. “Ele não apenas necessita da floresta e da taboca, mas o pica-pau-da-parnaíba depende também de um mosaico de ambientes preservados do Cerrado. Nós monitoramos alguns indivíduos e descobrimos que eles não cruzam áreas grandes que foram modificadas pela agricultura ou pecuária. Eles se deslocam apenas por áreas preservadas, uma raridade cada vez maior em um bioma que está sendo destruído de forma acelerada”, lamenta o professor.

Outro agravante à situação do pica-pau é que ele não foi encontrado em nenhuma unidade de conservação de proteção integral. De acordo com Renato, ele foi registrado apenas em algumas Áreas de Proteção Ambiental (APAs), categoria de UC de uso sustentável. A área protegida, entretanto, não parece estar protegendo muita coisa, como frisa o professor “A APA Estadual do Lago de Palmas, aqui no Tocantins, foi criada há 18 anos e já perdeu 50% da sua cobertura florestal nativa. E o pica-pau está lá, em um remanescente que nós não sabemos até quando vai durar”.

A perda ou antropomorfização de ambientes naturais está entre as principais ameaças à fauna, de maneira geral. “O desmatamento é um problema que gera outro, a fragmentação, que gera outro, o efeito de borda. Ou seja, em última instância, está tudo direta ou indiretamente relacionado à perda e transformação dos ambientes naturais”, sentencia Renato. “No ritmo atual, a cada dia a situação do pica-pau-da-parnaíba fica mais crítica. E muitas outras espécies estão na mesma condição, ou até pior, porque o pica-pau possui ampla distribuição, mas e as espécies endêmicas, restritas a um único local?”, questiona Renato.

No filme que estreia amanhã (05/10), o carismático Pica-Pau, enfrenta ele próprio essa ameaça. Assim como na animação “Os Sem-floresta” (2006), é uma oportunidade de promover a educação ambiental através de narrativas menos convencionais e mais atraentes, especialmente para o público-alvo: as crianças. Enquanto no mundo real a situação é um pouco mais complicada, nada melhor do que investir na conscientização e sensibilização ambiental do público-infantil, se esperamos conseguir no futuro um final feliz para os pica-paus também fora do cinema.